História

A Comunidade Morada da Paz é uma COMUNIDADE KILOMBOLA ESPIRITUAL ECOLÓGICA CULTURAL SUSTENTÁVEL TERRITÓRIO DE MÃE PRETA CoMPaz, localizada em Vendinha, entre os municípios de Triunfo e Montenegro, no Rio Grande Do Sul, nasceu oficialmente no início dos anos 2000, quando o povo brasileiro despertava de forma ardente para um desejo de participação de estilos de vida diferenciados, mais solidário, mais partilhado (A Carta da Terra que surge na Primavera de 2004, I Fórum Social Mundial, o sonho de mudanças na linha política do governo, a luta contra toda a forma de racismo-preconceito, para citar alguns). A rebeldia, àquela época, era um traço característico, e a criatividade pulsante era a nota perfeita para o início da construção de um novo sistema, onde a vida comunitária, o exercício do voluntariado e a partilha sem fronteiras compunham os acordes harmônicos para uma nova era. A chegada de um novo século despertava nas pessoas o desejo da mudança, da solidariedade perdida, do ato da fraternidade.

Os primeiros anos do Kilombo-CoMPaz, onde mulheres e homens se uniram em busca de uma nova forma de viver, foram dedicados ao autorreconhecimento, numa tentativa profunda de se compreender a jornada pessoal como pessoas, negras, quilombolas. Nesse período conhecemos também a realidade do entorno, os animais da região, os rios, as fontes e os mitos que vivificavam o local.

Após esse mergulho interior, o povo da Morada, como somos mais conhecidos, dedicou-se a um movimento mais amplo: a abertura dos portões da instituição e da comunidade e consequente inclusão, em nosso cotidiano, das pessoas que viviam nos povoados do entorno. Nosso olhar podia ver com clareza as pessoas que viviam em situações extremas, exercitando jogos tiranos de ganhos e perdas.

A aproximação foi se dando cuidadosamente através de diferentes atividades e espaço de inserção na cultura e no imaginário das pessoas da região. Para as várias estratégias de aproximação utilizadas nos orientamos nos princípios trazidos por canalização de nossa Yaba ancestral Mãe Preta; inspiração de nossa Yialaşé Yashodhan, na espiritualidade presente na Nação Muzunguê, na Carta da Terra e em nossos ancestrais quilombolas, e buscamos:

– aprofundar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e uma ampla aplicação dos conhecimentos adquiridos. Foi o momento em que aplicamos o projeto de Percepção Ambiental convidando as escolas da região para visitar o espaço Kilombo-CoMPaz e ludicamente observar e compreender como se dava a visão sobre o mundo ambiental (fauna, flora) e as relações socioecológicas com/no contexto.

– adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam a capacidade regenerativa da Terra, os Direitos Humanos e o bom-viver comunitário. Buscou-se aprofundar o conhecimento sobre agricultura orgânica e biodinâmica, pelas fases da lua, Kilombola, indígena. Efetivamos convênios com escolas técnicas, por alguns períodos fomos campo de observação e práticas permaculturais, manejamos com a flora nativa. Contatamos e visitamos espaços de produção e manejo não só da região, pessoas, sabedores e fazedores, falamos-escutamos muito e, depois de tantas urdiduras, tecemos o nosso jeito.

– proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida. O tempo tem sido nosso substrato em relação à realização de nossas atividades (preces práticas), organizamo-nos coletivamente para atender as demandas internas e expandir nosso caminho tracejado por este jeito de ser e viver que ensina dialogar com a vida através de uma temporalidade muito singular. Orientados por esta temporalidade do sentir, intuir, ler o desenho das nuvens, observar a direção do vento e o movimento dos animais é que seguimos desenhando nossas inserções e propondo eventos/atividades como: CÍRCULO MUNDIAL DA PAZ, TERREIRO DE CHÃO BATIDO, BRINCANDO COMPAZ, PEDAGOGIA DO ENCANTAMENTO, MUTIRÃO DA TERRA – PLANTIO COMVIDA; OKAN ILU; IPÁDÈ DA JUVENTUDE; COLÔNIA DE FÉRIAS CURUMIM-OMADE; LABIRINTO DOS SETE CAMINHOS, ENCONTROS DE DESFORMAÇÃO; ENCONTROS DIALÓGICOS; MULTIVERSIDADE COMPAZ; OKARAN COLETIVO DE PESQUIADORAS E PESQUISADORES KILOMBOLAS; OMORODÊ PONTO DE CULTURA DA INFÂNCIA, para citar algumas das atividades propostas e realizadas pelo Território de Mãe Preta. Levando para outras fronteiras, o que somos e como somos, citamos a Índia, o Nepal, a Bolívia, o Chile, Portugal, a Bélgica, o Uruguai, o Equador, o Senegal, os diferentes Estados do Brasil.

– cuidar da comunidade de vida com compreensão, compaixão e amor (Carta da Terra; ensinamentos indígenas, afrodiaspóricos, budistas, afrobrasileiros). Brota, depois de um sonho muito acalentado, a Morada Portal: Centro Cultural, Arte, Educação e Cidadania. O surgimento da Morada Portal provocou mudanças viscerais no diálogo com a vizinhança, as visitas à comunidade, as atividades… Não eram somente as pessoas da vizinhança que mudavam, éramos nós também que ampliávamos uma prática e uma ação até então escondida e ignorada. Inicialmente os moradores do entorno do Kilombo-CoMPaz observavam com olhares indiferentes toda aquela movimentação, nenhum deles se dispunha a participar ativamente do processo. Éramos considerados ainda como estrangeiros tentando encontrar soluções para um povo que vivia a centenas de anos excluídos de qualquer sistema político e social. Precisamos aprender o exercício da paciência, da humildade e do serviço despido de qualquer traço de colonialismo. Pouco a pouco, fomos aprendendo a construir laços de parceria com o povoado do entorno entre crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Destacamos como estratégia fundamental as visitas domiciliares realizadas toda a semana, as quais denominamos de -fazer a ronda na vizinhança – a partir daí fomos nos conhecendo, enamorando e tornando-nos íntimos. Muitas trilhas foram construídas (estudo da realidade e georreferenciamento) dos dados com apoio do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pesquisa da memória local intentando o resgate de um patrimônio imaterial com a escuta aos moradores mais velhos da localidade, lutas políticas de visibilização da situação de segregação social e econômica da população.

O Kilombo-CoMPaz aprendeu ao longo dos anos a discutir de forma horizontalizada e em ipádè (círculo sagrado) todas as suas decisões. O auto reconhecimento sempre foi o nosso traço fundamental, e a partilha juntamente com o exercício da honestidade e da ética sempre foram e são paradigmas para nossas tomadas de decisões. Provavelmente por sermos uma comunidade marcantemente feminina, acreditamos nos diálogos produtivos e incentivamos reuniões, mesmo que prolongadas, para que o tempo de gestação e parto da decisão final se processasse. Cada opinião é levada em consideração e observada cuidadosamente às contradições e pontos comuns entre todos e todas, a fim de que cada integrante possa ter o sentimento de pertinência e responsabilidade no resultado final. Muitas vezes esse processo nos levava a dificuldades aparentemente intransponíveis. Nesses instantes retomamos sempre a causa inicial, o motivo pelo qual nos reunimos e isso facilita o processo.

Outro fator que nos auxilia é a observação atenta das opiniões provenientes exclusivamente por conveniências pessoais, pois estas são questionadas por todos e todas de forma aberta, na tentativa de uma redefinição de posicionamento daquele e daquela que trouxe a proposta à baila. Exercitamos práticas que fortalecem nossos mitos e sedimentam nosso patrimônio imaterial afrobrasileiro, facilitando sobremaneira nossas decisões: o  Ipádè (a roda ou círculo), o rezo cantado (oração às Deusas e Deuses Mãe-Pai), as meditações, orins e a reverência a Yami e a nossos Orisas, à Mãe Natureza como uma de nossas Mestras. Foi e é dessa forma que conseguimos sobreviver na localidade de Vendinha, entre as fronteiras dos municípios de Triunfo e Montenegro, no Rio Grande do Sul. Somos uma comunidade que nasce em meio a um contexto de contraditórias profecias em que o mundo de Olùdomaré-Zambi-Maya, em seu transcurso exige que se abandone a superficialidade e se busque a raiz dos processos.

Nós estamos vivendo cada instante focalizando um horizonte: viver como se fôssemos morrer amanhã, deste modo, estaremos, no amanhã, sentados e sentadas nos Ipádè (círculos) dos ancestrais. Mas o amanhã ainda não chegou – ele está vindo – então, é nossa a tarefa pedagógica de contar e realizar nossa própria história.